domingo, 23 de dezembro de 2007

Isomerílita

Depois de alguns minutos andando sem saber direito por onde...
- Você me parece perdido, rapaz - uma voz feminina disse a ele num tom doce.
- É... - ele respondeu sorrindo, meio sem jeito. Mais ou menos. Onde você está? Não estou te vendo.
- Não sei se já é hora de me mostrar. Pode ser que você se assuste.
- Ehr... Bom... Que voz bonita a sua.
- Muito obrigada - e a garota apareceu diante dele. Pelo menos a voz você achou bonita.
- Meu deus!
- Eu sabia que você se assustaria. Como pode ver, não estou exatamente vestida... - ela disse olhando para si mesma e observando o aparente pedaço de pano branco que se enrolava em seu corpo como uma espiral, começando pelo ombro direito e cobrindo os seios, a pelve e os glúteos.
- Juro que nunca vi ninguém linda assim.
- Nossa! Muito obrigada. Você também é bem bonito. Mas... Me permite fazer uma pergunta pessoal?
- Claro.
- O que fez essa cicatriz? - ela apontou para o peito descoberto do garoto, que tinha uma cicatriz que o cortava na diagonal.
- Ah, sim... Me cortaram com uma faca.
- Que horror! E fica a marca assim?

Sem entender direito, o garoto respondeu:

- Bom... Fica... É normal... Você também tem cicatrizes. O que aconteceu?
- Eu não entendo... Quando as coisas dóem, deixam marcas em você?
- Ehr... Deixam... Boa parte delas deixa. Mas como você não entende? A sua boca, por exemplo, está toda marcada. Como foi isso?
- Ah! Eu fui uma adolescente, vamos dizer assim, sapeca.
- Como assim?
- Ora... Essas marcas são dos beijos que eu ganhei.
- Como?! Beijos deixam marcas?!
- E como deixam! Olha - e virou-se de costas para mostrar as cicatrizes que tinha na nuca - todas essas foram beijos.

O garoto fez a cara mais surpresa do mundo.

- Conte mais... - ele disse sem saber direito se queria mesmo que ela contasse.
- Essas marcas todas nas minhas costas são cafunés. Afagos deliciosos que me fizeram.
- Meu Deus! Como deixam marcas assim?
- Ora! Como não? Tenho um monte na cabeça também, mas o meu cabelo esconde.
- E o seu corpo tem algumas manchas... O que são?
- Ah! Das minhas preferidas! Abraços maravilhosos! Curtos, longos, de corpo inteiro, em pé, deitada... Um mais delicioso que o outro!
- Ehr... Me permite fazer uma pergunta absolutamente indiscreta?
- Pergunte.
- Você é... virgem?
- Não.
- E, quando fez... Ficaram cicatrizes? - ele perguntou absolutamente incerto de perguntar.
- Claro, mas não são visíveis você sabe por que. É uma das carícias mais perfeitas que se pode fazer! Deixa marcas como qualquer outra carícia.
- Eu não entendo!
- Como não entende? EU não entendo essa marca no seu peito! E essa no canto da sua testa? Parece um furo! O que foi isso?
- Uma bala. Foi assim que eu morri.
- Com um tiro na testa?!
- Foi.
- Nossa!
- Ora... E essa nas minhas costas? - ele mostrou um corte extremamente profundo. Essa foi de quando me cravaram uma faca, poucos minutos antes de atirarem em mim.
- Como é isso?! As coisas ruins é que deixam marcas na sua terra?
- É, ora! Normal! De onde você veio?!
- De Isomerílita.
- E lá são as coisas boas que deixam cicatrizes, fazem sangrar e tal?
- Mas é claro! O que seria das pessoas se, além da dor das coisas ruins, tivessem que carregar as marcas?
- Como eu? - ele perguntou com os olhos cheios d'água.
Ao ver que o rapaz começava a chorar, a garota o abraçou e pôs-se a acariciá-lo nas costas. As marcas que ele tinha sumiam ao toque das mãos dela e outras apareciam no lugar.
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Nem adianta ver o dicionário que você não vai achar "Isomerílita" nele. Misturei "isomeria" - que eu "roubei" da química pra representar algo às avessas - e "lito" - que eu "roubei" da biologia pra representar terra - pra dizer algo como uma terra onde as coisas acontecem ao contrário.
Agora imagine que apareçam dois seres nus com os corpos marcados. Um marcado com um corte no peito, uma faca cravada nas costas, uma bala na testa e outras de outros machucados e outro manchado de abraços e marcado de beijos e cafunés.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Sobre a saudade...

Uma palavrinha até pequena. Uma paroxítona de três sílabas, sete letras e um impacto gigantesco no pobre ser que se atreve a sentir essa coisa maluca que a gente chama de saudade.

E essa aí acontece como? A resposta é: quem sabe?

Num dia desses, aproveitando que as aulas acabaram e tudo mais, você abre o seu armário pra limpar uma bagunça que você fez durante o ano. Sabe aquela bagunça que você arruma uma vez por ano e não muito mais do que isso? Pois é... E lá você acha uma porcariada enorme que nunca mais você vai usar. E no meio dessa porcariada enorme - que não envolve só o material didático, paradidático e problemático do ano que passou - tem coisas do tipo bilhetinhos que você trocou com um amigo na sala de aula, uma cartinha que você recebeu de um admirador secreto, uma foto que você tirou com um pessoal da sua turma... Essas coisas que você vê e acha que não vão fazer falta - mas isso vale para pessoas normais; cancerianos que, como eu, têm surtos de nostalgia, costumam guardar coisas que, muito provavelmente, não vão servir pra nada.

E aí você joga fora.

Uns trezentos e sessenta e cinco dias depois você vai ver aquela porcariada de novo e vai arrumar de novo porque tem mais coisa pra jogar fora - e ressalto que não é só o material didático, paradidático e problemático do ano que passou. Aí você pára de arrumar as coisas e se pergunta: cadê aquela foto que eu tirei com o Fulano, a Sicrana e o Beltrano? Não tem jeito: você se dana a revirar aquele armário - mas não é pra arrumar a bagunça; agora é pra achar a foto. E você não acha. E agora?

E com pessoas? Aí, sim, é complicado DE VERDADE sentir saudade.

Num dia desses você estava vagando sem rumo naquela imensidão que é a sua casa - que, mesmo que seja um apartamentinho pequenininho, vira uma imensidão de vez em quando - e resolveu ligar pra alguém. Aí você pega a sua agendinha pra procurar o telefone - ou liga de vez, já que pode ter o número decorado - , tecla oito dígitos e começa com os "tuuuuuuuu!" do telefone fazendo barulho do outro lado da linha pra ver se a pessoa atende. Vamos parar por aí. Por que foi mesmo que você ligou? Estava com o quê?

Desde a semana passada que você não vê o seu namorado - ou a sua namorada - porque os dois estavam enterrados de mil coisas pra fazer até a altura do nariz. Daí você conseguiu se desafogar e arranjou um fim de tarde e uma noitinha pra passar com essa pessoa especial. Só que, antes de arranjar esse tempinho... Que foi mesmo que você sentiu? Como era a palavra? Paroxítona? Três sílabas? Sete letrinhas?

E quando você passa muito tempo - leia-se "tanto tempo que você mal consegue lembrar quando foi a última vez" - sem ver aquilo ou aquela pessoa de quem você está com saudade? Como é que fica? Aquela fotografia, aquele disco, aquele filme, aquele lugar fazia tão bem... Trazia tantas lembranças boas... E aquela pessoa? Fazia tão bem estar com ela, né? O cafuné daquela pessoa, aquelas conversas de horas, as piadinhas, as risadas... Tudo tão gostoso! E quando falta? E quando passa muito tempo - leia-se "aquela descrição enorme que eu dei ali em cima sobre 'muito tempo' e eu não quero repetir" - sem essa pessoa? Incomoda? Dói? Faz falta? Dá vontade de chorar de vez em quando?

Se a resposta for "sim" pra, pelo menos, uma das quatro últimas perguntas aí em cima, é bem capaz de você ter sido acometido por essa coisinha de sete letrinhas, três sílabas e blábláblá. E, se a resposta foi "sim" pras quatro perguntas...

Bem-vindo ao clube!

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Eu já vi esse filme...


Quem aqui nunca assistiu "A Lagoa Azul"? É esse mesmo o nome do filme? Aquele daquele casal de irmãozinhos que foi parar numa terra desconhecida com um velho e blábláblá... Quem nunca assistiu isso?


Quem nunca assistiu a um filme mais de uma vez? Como você fica? O que é que te passa pela cabeça quando você vê o Titanic afundando o nariz no meio do Oceano Atlântico? O que é que você pensa quando você vê a Elektra querendo tirar a máscara do Demolidor depois de já ter cravado o unsai no ombro dele? O que é que você pensa depois de ver que o Kurt Russel deixou a filha com o namorado pra trás e mergulho pra procurar alguma coisa pra desligar as hélices do Poseidon? O que é que você pensa quando você já viu essas cenas todas mais de uma vez? "Pede pra sair!"?


Legal. Você vê o filme pela trocentésima vez e já sabe de cor e salteado o que vai acontecer depois daquela cena que você vê naquele momento. Você pega aquele vídeo pra assistir e já sabe exatamente o que vai ver desde a hora em que coloca o disco na bandeja do aparelho de DVD até o último segundo dos créditos. E até aí tá tudo ótimo, né?


E quando o assunto é "erro"?


Você, num belo dia, fez uma besteira qualquer na sua vida. Tá bom. Você fez, viu que fez - ou alguém mostrou pra você - , pediu desculpa e ficou tudo certo - ou não; você fez, viu que fez, deu merda de vez e você entendeu que, se fizer de novo, vai dar tudo errado de novo.


E aí você pensa que aprendeu: "Não vou fazer isso de novo porque eu já sei no que vai dar, se eu fizer." E fica todo confiante nesse pensamento de "é só não fazer de novo". Mas e quando esse erro está fora do seu controle? E quando é involuntário ou inevitável? E quando REALMENTE não tem jeito de você impedir que aquilo aconteça - por mais que você queira impedir que aquilo aconteça - , heim?


Mata de raiva! Quando você vê o Kurt Russel nadando pra achar o botão que vai desligar as hélices do Poseidon, você fica com raiva e começa com os "Não! Volta pra lá! Você vai morrer afogado!". E adianta? Não. Naquela cena do Poseidon, o Kurt Russel já está na água e ele vai nadar até achar o painel de controle. E aí você sabe que ele vai tentar apertar o botão pra desligar - mesmo vendo que o botão está quebrado - , vai ter uns espasmos porque ficou sem ar e os pulmões começam a querer puxar o que tiver pra dentro, vai apertar o botão de inverter o sentido das hélices, vai ter um último espasmo e vai morrer afogado. Você sabe que isso tudo vai acontecer e não há o que impeça.


É mais ou menos a mesma coisa. Só que, na vida real, às vezes não dá pra impedir ou parar certas coisas. Você só se toca do erro que você cometeu - pela trocentésima vez - depois que já cometeu. E aí? Reza pra ter conserto? Tá ótimo. Acho que todo mundo devia ter uma oportunidade de pedir desculpa e "começar de novo" tentando não trilhar o mesmo caminho que levou até aquilo. Acho que todo mundo deveria ter uma chance ou duas de não fazer de novo.


E se não tiver?